ECOS E MEMÓRIAS DE A Morte do Palhaço
Quando publiquei a minha primeira obra de ficção, Plâncton, Vergílio Ferreira procurou situá-la dentro de uma tradição do romance português. Numa conversa que tivemos no extinto café Monte Carlo, em Lisboa, falou de duas linhas ficcionais que se polarizavam em Raul Brandão e Eça de Queiroz, e colocava-me dentro da linha brandoniana que, segundo ele, remontava à Menina e Moça de Bernardim Ribeiro. Não se contrariam os Mestres (para além de tudo, Vergílio Ferreira fora meu professor de grego no liceu Camões), e aceitei de bom grado esta minha inclusão no que me parecia ser uma família melancólica e nocturna que, além do mais, se inscrevia dentro de um universo que me era próximo: o dos nórdicos, como Strindberg e Kierkegaard, e o de russos como Dostoievski e o Tolstoi das novelas, não o épico da Guerra e Paz. O tempo passou, outras coisas foram surgindo e apagando esta ilustre linhagem até que, quando João Brites há já mais de uma década me propôs uma releitura de Raul Brandão para o seu espectáculo a partir de A Morte do Palhaço, representado no Teatro Maria Matos, me lembrei dessas palavras de Vergílio Ferreira e entrei no jogo que consiste em entrar na cabeça de um outro, e puxar de dentro dos seus fantasmas aquilo que se poderá cruzar ou confundir com o meu próprio imaginário. Não precisei de um grande esforço para descobrir uma identidade profunda com o universo de A Morte do Palhaço, que então me falou mais do que o Húmus, que só recentemente redescobri numa leitura que dele fiz na sua absoluta e total singularidade de entrar na sociedade pela voz e pela alma dos que ela despreza e silencia. Muito antes de Beckett, o que Raul Brandão faz é assumir o lugar dos marginais e excluídos e levá-los ao estatuto de uma santidade negativa, como sucede com Eponina que é, sem dúvida, uma das figuras femininas mais fortes da nossa literatura, ao lado de outras como a enigmática “menina” de Bernardim ou a Maria do Frei Luís de Sousa de Garrett. O drama é pintado com as cores negras e violentas do expressionismo, de que Brandão é contemporâneo e, pode dizer-se, um cultor, embora nada possa demonstrar que tenha conhecido esse movimento e apreciado o seu radicalismo estético. Porém, se quisermos ter um retrato do que foi o Portugal dessa transição da Monarquia para a República, e a miséria mais extrema dos que estavam por baixo, desde os camponeses às criadas de servir, do poeta pobre às prostituta que por vezes eram quase crianças, como algumas de que fala no diário, é nele que o teremos de ir procurar. E esse retrato é feito sob a forma de um fresco monumental em que entram todas as classes e todas as regiões, como se Brandão se tivesse dado como projecto guardar a memória de uma época que, sob uma forma mais atenuada, só tem equivalente nos romances de Aquilino Ribeiro (outro grande esquecido nos dias de hoje). João Brites voltou a dar voz a essas personagens, e pô-las em cena de uma forma criativa, recuperando esse tom do expressionismo e do excesso de uma prosa inigualável. Depois dele, outras encenações de obras de Brandão surgiram, em particular a partir do Húmus. É por isso de toda a actualidade recuperar essa encenação, recriando-a, e ver como essa prosa se transforma em discurso e em canção, sem que para isso tenha sido necessário afastarmo-nos da sua linguagem. Com efeito, como Herberto Helder já fizera, a escrita de Brandão molda-se facilmente à poesia;e sobre o barro dessas palavras surgem estas construções teatrais que dão vida, de novo, a uma obra que eu classificaria como o anti-Livro do Desassossego, dado o eco de um mundo subterrâneo e inconsciente que, sob um fundo de crenças e de esperanças traídas, corporiza uma época sombria. Também por isto, Raul Brandão volta a ser actual e esta Morte do Palhaço põe-nos perante uma voz que merece ser escutada. (aqui).
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