Conversas no Museu | Serralves
Juan Muñoz | UMA RETROSPECTIVA EM SERRALVES
(mais informações aqui)
Manuel da Fonseca
«Manuel da Fonseca insere-se entre os mais notáveis contistas actuais, fundindo a recuperação comovente da experiência infantil e adolescente como uma figuração, por vezes cheia de carácter, dos conflitos e do processo social da região campaniça, no Alentejo.»
Óscar Lopes
«Manuel da Fonseca foi um neo-realista que não inventava mas traduzia a angústia da planície em que nascera e do português que nela morria aos poucos ou traçava na terra mais um sulco de miséria ou de sangue.»
Francisco Sousa Tavares
Manuel da Fonseca nasceu no dia 15 de Outubro de 1911 em Santiago do Cacém e faleceu no dia 11 de Março de 1993. Fez os estudos secundários em Lisboa, tendo-se dedicado desde cedo ao jornalismo. Colaborou em várias publicações, de que se destacam as revistas Afinidades, Altitude, Árvore, Vértice e os jornais O Diabo e Diário. Juntou-se ao grupo de escritores neo-realistas que publicaram no Novo Cancioneiro. Estreou-se em livro com a colectânea poética Rosa dos Ventos (1940). Publicou ainda, em poesia, as seguintes obras: Planície (1941), Poemas Completos (1958) e Poemas Dispersos (1958). Em ficção, publicou: Aldeia Nova (contos, 1942), Cerromaior (romance, 1943), O Fogo e as Cinzas (contos, 1951), Seara de Vento (romance, 1958), Um Anjo no Trapézio (novela e contos, 1968), Tempo de Solidão (contos, 1973). Publicou ainda a colectânea de crónicas intitulada Crónicas Algarvias (1986). (daqui)
BARCA BELA, de Almeida Garrett
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!
Almeida Garrett
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CÃES, MARINHEIROS, de Herberto Helder (Os Passos em Volta)
Era um cão que tinha um marinheiro. O cão perguntou à esposa, que se pode fazer de um marinheiro? Põe-se de guarda ao jardim, respondeu ela. - Não se deve deixar um marinheiro à solta no jardim, que fica perto do mar. Um marinheiro é uma criatura derivada por sufixação, e pode recear-se o poder do elemento base: o radical mar. Em vez de guardar o jardim, ele acabaria por fugir para o mar. - Deixá-lo fugir, disse a esposa do cão. Mas ele não estava de acordo. Que um facto deveria ser esse mesmo facto até ao limite do possível: quem possui um marinheiro para guardar o jardim deve procurar mantê-lo a todo o custo, assim como o cão, ou o casal de cães, que não tiver um marinheiro deve não tê-lo até a isso ser absolutamente forçado. - Nesse caso, só nos resta ir para uma terra do interior, longe do mar, disse a cadela. E então foram para o interior, levando pela trela o marinheiro açaimado. Durante o percurso viram muitas paisagens. O marinheiro estava espantado com as paisagens que podem existir longe do mar. Fez diversas observações a esse respeito, provocando o risonho latido dos cães que, pela sua parte, concordavam em que tinham um marinheiro muito inteligente. - Nem todos os cães têm a nossa sorte, disse o cão, pois conheço vários cães que são donos de vários marinheiros estúpidos. Iam por isso bastante contentes e diziam, a outros cães com quem se cruzavam, que possuíam um marinheiro invulgarmente esperto. - Ele tem uma filosofia das paisagens, dizia o cão. Um cão da Estrela, que encontraram naturalmente perto da Serra da Estrela, perguntou-lhes se o marinheiro gostava de sardinhas. - Adora-as, respondeu a cadela. - Isso não me admira nada, disse o indígena. E na verdade não parecia admirado. Quando chegaram ao mais interior possível, alugaram uma casa com um jardim e puseram o marinheiro a guardá-lo. - Guarda-o, disseram. Deixaram-lhe ao lado uma dúzia de latas de sardinhas e foram para dentro de casa. Durante sete dias e sete noites, o marinheiro reflectiu sobre as paisagens do interior e comeu as sardinhas de conserva. Depois foi atacado de esgana, e começou a andar em círculos cada vez mais apertados no meio do jardim. Os cães observavam-no da janela e viam que o seu marinheiro perdia as forças a cada volta. Um dia, ao anoitecer, caiu para o lado resfolegando. - O mar, ouviram-no dizer. Então foram para dentro, e dormiram. De manhã vieram cedo ao jardim e verificaram que o marinheiro estava morto. - Era um marinheiro tão esperto, disse a cadela. - Pois era, disse o cão, foi pena. E enterraram o marinheiro debaixo de uma acácia. Mas como já se haviam habituado à vida do interior, não regressaram ao litoral. Nunca mais tiveram marinheiros. - Para quê?, dizia a cadela, ralações já existem de sobra. E quem se atreve a negar que ela tinha razão?
Herberto Helder (Os Passos em Volta)
Uma tarde diferente: O guindaste branco espalha as suas asas
Herberto helder: Afastem de mim a inocência || António Guerreiro
UM AR DE FAMÍLIA atrai para o mesmo lugar problemático uma afirmação de Hölderlin - de uma carta enviada à mãe - e dois versos de Herberto Helder: um, designando a poesia como «a ocupação mais inocente de todas»; o outro, enunciando o princípio que coloca a poesia nas regiões do terror e liberta nela um núcleo trágico: «- o inferno! alguém disse: afastem de mim a inocência/ eu falo o idioma demoníaco». A falsa e irónica inocência de Hölderlin revelou-se, afinal, como um saber que inaugura uma idade heróica da literatura. Herberto Helder pertence ainda a esta idade.
Princípio importante deste «ethos» heróico (que toda a poesia moderna fortemente reivindicou): o poeta constitui-se única e exclusivamente através da sua obra (e, desse modo, não coincide com um indivíduo que tem uma determinada identidade civil), a qual deve escapar a todos os factores pessoais e sociais que a alienam. Dito de outro modo, ela não deve legitimar-se senão no interior de um espaço literário autónomo. «Les honneurs déshonorent», disse Flaubert contra o sucesso mundano. As recusas e resistências de Herberto Helder - ou melhor e mais radicalmente: a decisão de, enquanto poeta, não existir senão através da sua poesia - encontram nessa frase do escritor francês um sentido muito evidente.
Durante anos, habituámo-nos a designar a sua «Poesia Toda». Mas esse «corpus» volumoso foi reduzido, em 2001, a uma «súmula», acompanhada desta advertência: «para dizer que é uma ressalva ao poema contínuo pelo autor chamado poesia toda. O poema contínuo parecia não exigir a escusa das partes que não eram punti luminosi poundianos, ou núcleos de energia assegurando uma continuidade imediatamente sensível. O livro de agora pretende então aceitar a escusa e, em tempos de redundância, estabelecer apenas as notas impreteríveis para que da pauta se erga a música, uma decerto não muito hínica, não muito larga nem límpida música, mas este som de quem sopra os instrumentos na escuridão (...)».
Um estreito laço familiar aproxima também «os tempos de redundância» apontados por Herberto Helder e «o tempo de indigência» de Hölderlin - razão da sua pergunta inquietante: «Para quê poetas?» Na nota que citámos, coloca-se de maneira explícita a questão da condição epocal da poesia. E não é certamente exagerado dizer que a de Herberto Helder (e alguns, raros, textos e «extratextos», como este aqui citado) obriga, de maneira radical (e como nenhuma outra, na poesia portuguesa contemporânea), a questionar o próprio lugar e estatuto da poesia, hoje. Porque ela designa um «espaço literário» que só podemos reconhecer como intempestivo. Não se entra nela senão interrompendo o curso do mundo, suspendendo as linguagens da história e pondo entre parêntesis as circunstâncias empíricas. Eis a literatura como utopia.
Essa drástica redução da Poesia Toda operada em Ou o Poema Contínuo (2001) é agora confirmada em A Faca Não Corta o Fogo. De certa maneira, esta concepção do «poema contínuo», da obra como poema único que pode ser ampliado sem quebras, responde à exigência de caminhar para um ponto onde só a linguagem age, com todo o seu poder, suprimindo a pessoalidade e, de certa maneira (não como Mallarmé, mas também não o ignorando), erradicando o autor. Na poesia de Herberto Helder não há psicologia, nem confidencialidade, nem biografia - estamos noutro mundo, mais difícil de reconhecer e de habitar. O que nela emerge é uma paixão puramente literária. Ora, em «tempos de redundância», o grande «escândalo» de Herberto Helder é o de se furtar à esfera mundana da «vida literária», deixando que apenas a sua obra exista e siga o seu curso sem quaisquer interferências do exterior. Repare-se que a única entrevista que se lhe conhece é uma «auto-entrevista».
Esta atitude, que não devemos reconduzir a uma mera «idiossincrasia», ganha hoje um sentido fundamental. O que é que se acelerou nas últimas décadas? Acelerou-se a perda de autonomia dos escritores e do campo literário em geral, um campo que deixou de reivindicar o direito a ser ele próprio a definir os princípios que o legitimam. A legitimidade passou a ser outorgada pela instância do mercado e por factores mundanos, que ditam as regras da consagração. E a literatura de entretenimento ganhou um poder desmesurado, quase deixou de ser reconhecível como tal, como se só ela existisse. Por isso é que a obra de Herberto Helder é intempestiva: conduz-nos para um espaço e um tempo que lançam um forte desafio a todo o contexto, não apenas o literário; fala um «idioma» que é cada vez mais difícil de escutar.
Na história da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, Herberto Helder ocupa a posição do «poeta forte», que provoca nos que vêm depois uma «angústia da influência». Já muitas vezes se falou deste poder totalitário que exerceu sobre poetas mais jovens, da atracção fatal que representou. Joaquim Manuel Magalhães escreveu um texto fundamental sobre esta questão. Entretanto, a poesia portuguesa seguiu maioritariamente por vias diferentes. Mas a luz que emana do fogo lento da poesia de Herberto Helder não se extinguiu nem um pouco. Sem ela, outra figura teria o último meio século literário português.
António Guerreiro, Actual (Expresso), 11/10/08
A propósito do "Dia Mundial da Saúde Mental" | Adília Lopes
"Há um preconceito em relação à doença mental que não há em relação às outras doenças. É para ajudar a desfazer esse preconceito que escrevo isto. Mas estou afinal no mesmo barco que os doentes do Júlio de Matos que pedem esmola na rua para tabaco e café. Quando disse ao Professor Pinto Peixoto, meu professor de Termodinâmica, na Faculdade de Ciências de Lisboa, que tinha estado "doente dos nervos", ele disse-me "doenças de nervos são doenças de ricos". O Professor Pinto Peixoto é o mais célebre meteorologista português, era inteligentíssimo e muito culto, mas isto que me disse é um disparate: a doença mental afecta tanto os pobres como os ricos.
Volto sempre à frase de Francesc Parcerisas, poeta catalão: uma poetisa tem o direito de apoiar candidatos à Presidência da República e de declarar à televisão o que come ao pequeno-almoço. Penso que todos devíamos ter esse direito. Mas, quando torno público que tenho uma doença mental, sei que é muito mais fácil para mim fazê-lo do que, por exemplo, para uma educadora de infância ou para um polícia. Ser poetisa, ser artista, é, neste caso, um escudo visível que me protege. Pelo menos, parece-me que é assim. Mas ser poetisa não me dá dinheiro para viver e é aí que ser poetisa e ter uma doença mental põe problemas. Por isso não é assim tão fácil, para mim, assumir publicamente que tenho uma doença mental. Admite-se uma poetisa louca, isso pode até funcionar como chamariz, aumentar o valor dos seus textos (aos meus olhos, não aumenta nada). Mas uma professora do ensino secundário louca? Uma bibliotecária louca? Uma animadora cultural louca? O artista pobre, genial e louco só é admitido depois de morto. E afinal não é esse o meu papel. Como vou contar, já fiz muitos disparates em público, mas, segundo o psiquiatra que me trata agora, tenho uma doença mental compensada. Isto, para mim, é como ter o salto de um sapato mais alto do que o outro por se ter uma perna mais curta do que a outra.
Não há exibicionismo nem confessionalismo impudico neste texto. Como aquele médico de cabelos brancos, que ensinava na televisão como fazer quando uma criança bebe lixívia, e que se regozijava por ter salvo assim a vida a uma criança, espero que este texto vá ter com aqueles que têm vontade de beber lixívia ou pó para ratos." (Cartas do meu Moinho)
Concerto de Clara Ghimel sobre poemas de Ana Luísa Amaral
Foi ontem, dia 8, na Reitoria da Universidade do Porto.
A Bruna, a Gabriella e a Patrícia estiveram lá.
Somos de natureza contrária., de Joaquim Manuel Magalhães
Somos de natureza contrária.
Um de nós pode destruir o outro,
mas só por fora, uma onda que vem
de muito longe, demora a chegar
à praia, ao sol que sossobra
no lugar onde nós estamos,
entregues, entristecidos. Dentro,
no interstício de silêncio
ameaçado pela despedida, sempre
de despedida ameaçado, nenhum
de nós será destruído nunca,
a memória da rua com plátanos,
o pólen mordente da primavera,
o cântico dos pardais. Não,
eu não quero esse amor indeciso
que sossobra num frio inebriante:
cada um com o outro tenta conservar
o seu ser, a identidade que sorri
na janela do quarto que fica por fechar.
Joaquim Manuel Magalhães, Uma luz com um toldo vermelho
Depois do Adeus, de Garrett, vamos ver duas despedidas mais "contemporâneas".Milly chéri, de Adília Lopes
Milly chéri
tenho coisas
para te dizer
de viva voz
cartas de amor
nunca mais
agora só escrevo
cartas comerciais
Não quero
ter filhos
gosto muito
de foder
contigo
e com outros
mas de bebés
não gosto
uma vez
por outra
tem graça
mas sempre
não
os bebés deprimem-me
se engravidar
faço abortos
por muito
que me custe
e custa-me
muito
(um bebé é dom
do Espírito Santo)
Ficas
no castelo de Beja
e eu aqui
no convento
com vento
(as janelas
fecham mal
estão empenadas)
há uma passagem
subterrânea
como nos romances
que liga
castelo e convento
o outro é o Céu
com peúgas
e cuecas sujas
Antes de chegares
pensava assim
mesmo que Milly volte
não quero foder
o feitio das unhas dos pés
e a implantação dos cabelos
na nuca
do meu Milly chéri
mais tarde
ou mais cedo
vão-me meter nojo
nunca mais danço
nunca mais dou beijos
mas quem não pensa
em foder
está fodido
mas agora
quero foder contigo
Portanto Milly chéri
és muito bem vindo
a mulher ( eu )
deixa
pai e mãe
e apega-se
ao homem ( tu )
e são ambos
uma carne
Adília Lopes
“Acho que era a Sylvia Plath que estava convencida, por volta de 1950, que para escrever romances era preciso ter amantes e fazer viagens. É um mito, isso dos amantes e das viagens. Pode--se ser feliz e escrever romances sem ter amantes e sem fazer viagens. Mais importante que amantes e viagens é ter um espaço próprio, um domínio, um território, uma casa, pelo menos um quarto com privacidade, como muito bem viu Virginia Woolf. Para ser feliz não é preciso foder, ao contrário do que apregoam as revistas. Neste meu tempo de horror económico, parece que tudo gira à volta das fodas. [...] Mas não condeno quem sinceramente dá beijos e abraços e faz coitos e faz filhos e faz abortos e depois sofre com isso e se perde neste massacre quotidiano que é a foda obrigatória, o perder a virgindade obrigatório antes dos 17 anos, o orgasmo, os super-bebés. Isto é tudo tão ridículo! E é trágico.”
Adília Lopes, Obra (pg.463)
O guindaste branco espalha as suas asas, Poesia de Lawrence Pettener, por Filipa Leal
Filipa Leal nasceu no Porto. Formada em Jornalismo, é Mestre em Estudos Portugueses e Brasileiros. Publicou «lua-polaroid», «Talvez os Lírios Compreendam», «A Cidade Líquida e Outras Texturas» e «O Problema de Ser Norte». Tem participado em vários Encontros de Poesia, nomeadamente na Galiza, em Pisa, Zagreb e Bristol. Integra, desde 2004, os Seminários de Tradução Colectiva de Poesia Viva da Fundação da Casa de Mateus.
Clube Literário do Porto
Rua Nova da Alfândega, 22
Sábado, 11 de Outubro, 17 h
Da Escola ao Clube Literário:
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