E eu digo: "abraça-me". E os teus braços fazem-se. E eu digo: "abrasa-me". E tu fazes-te em braços. É neste momento que a camélia, escondida, se ruboriza e a página tinge-se em perfume.
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Contributos Para um Botânica Feminista
Sei que tu tens um gineceu. Eu também tenho um androceu. Se fossemos coerentes, nem sequer falávamos. (L)íamos.
Leio-te em Braille, cega de tanto esperar.
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Parafraseando as Especialistas
Amo-te com a ponta dos dedos.
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Estado da Questão
O que os outros escreveram sobre o teu corpo não sei O que as outras escreveram no teu corpo não me interessa Sei que nunca viste o teu rosto – e será que a água te engana? Será que tens rosto? De todas as tuas dúvidas eu te dissiparei - abandona-te nas minhas mãos científicas ou ciosas.
Sei que nunca viste as tuas costas. Lá chegarei. Cuidemos em vigiar o tempo.
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Há hortênsias que são verdes. Arrepiam-se nos canteiros vendo passar os carros. E as enxadas que sulcam os regadios mas elas não se movem. As suas razões seminais continuam. Arrepiadas. Joana Serrado
Joana Serrado nasceu no fim do Inverno, no ano da Revolução Iraniana. Estudou várias coisas de que não se lembra entre Coimbra A e Coimbra B, quando falhava a ligação. Usa óculos e anda aos tombos na Holanda à espera de ver a aurira boreal. Vai casar-se ciom um neorealista, no ano da Ocupação Iraniana.
Publiquei, há vinte e dois anos, o romance Onde Está a Felicidade? - Pouco depois, Alexandre Herculano, republicou as Lendas e Narrativas, escrevia na Advertência: ...Nestes quinze ou vinte anos, criou-se uma literatura, e pode dizer-se que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e Narrativas até o livro Onde Está a Felicidade? que vasto espaço transposto?”
Se comparo o Amor de Perdição, cuja 5ª edição me parece um êxito fenomenal e extra-lusitano, com O crime do Padre Amaro e O Primo Basílio confesso, voluntariamente resignado, que para o esplendor destes dois livros foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso de dezasseis anos. O Amor de Perdição, visto à luz eléctrica do criticismo moderno, “é um romance romântico, declamatório, com bastante aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo". Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi isso. Mas agora, como indemnização, faz rir: tornou-se cómico pela seriedade antiga, pelo raposinho que lhe deixou o raço das velhas histórias do Trancoso e do padre Teodora de Almeida.
E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.
Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela quando as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor antepunha a frequência de Quintiliano à do Colete-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar num espelho fiel.
Pois que estou a dobrar o cabo tormeatório da morte, já não verei onde vai desaguar este enxurro, que rola no bojo a Ideia Novíssima. Como a honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por efeito de uma grande evolução-rigol-boche. A lógica diz isto; mas a Província, que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e esta 5ª edição do Amor de Perdição quase esgotada.
(La vie continue d’être libre et facile - Collage expédié par Guy Debord à Constant en 1959)
DERIVA
Serás tua a figuração plena de uma deriva sem nome? Estarei eu em falta, incompleto e preso às diferenças da linguagem, isto é, à estreita virtude que nos liga sob a tempestade?
É opaco o sentido: diz a contemplação do teu corpo (contágio de árvores sensíveis sob um céu fantasma) diz a erudição das metáforas apontada á cabeça.
Rememoro os círculos com que rodopiamos, uma e outra vez, na eterna deflagração dos ventos.
Caiu sobre o país uma cortina de silêncio a voz distingue o homem mas há homens que não querem que os demais se elevem sobre os animais e o que aos outros falta têm eles a mais no dia de natal eu caminhava e vi que em certo rosto havia a paz que não havia era na multidão o rosto da justiça um rosto que chegava até junto de mim de nicarágua um rosto que me vinha de qualquer das indochinas num mundo onde o homem é um lobo para o homem e o brilho dos olhos o embacia a água Caminhava no dia de natal e entre muitos ombros eu pensava em quanto homem morreu por um deus que nasceu A minha oração fora a leitura do jornal e por ele soubera que o deus que cria consentia em seu dia o terramoto de manágua e que sobre os escombros inda havia as ornamentações da quadra de natal Olhava aquele rosto e nesse rosto via a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados e os pés gretados de homens humilhados de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés ao longo de desertos descampados Morrera nesse rosto toda uma cidade talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros se permita exercitar melhor a caridade A aparente paz que nesse rosto havia como que prometia a paz da indochina a paz na alma Eu caminhava e como que dizia àquele homem de guerra oculta pela calma: se cais pela justiça alguém pela justiça há-se erguer-se no sítio exacto onde caíste e há-de levar mais longe o incontido lume visível nesse teu olhar molhado e triste Não temas nem sequer o não poder falar porque fala por ti o teu olhar Olhei mais uma vez aquele rosto era natal é certo que o silêncio entristecia mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar tal rosto para ver que alguém nascia
Maria das Dores se assustou. Mas se assustou de facto. Começou pela menstruação que não veio. Isso a surpreendeu porque ela era muito regular.Passaram-se mais de dois meses e nada. Foi a uma ginecologista. Esta diagnosticou uma evidente gravidez.
— Não pode ser! gritou Maria das Dores.
— Por quê? a senhora não é casada?
— Sou, mas sou virgem, meu marido nunca me tocou. Primeiro porque ele é homem paciente, segundo porque já é meio impotente.
A ginecologista tentou argumentar:
— Quem sabe se a senhora em alguma noite...
— Nunca! mas nunca mesmo!
— Então, concluiu a ginecologista, não sei como explicar. A senhora já está no fim do terceiro mês.
Maria das Dores saiu do consultório toda tonta. Teve que parar num restaurante e tomar um café. Para conseguir entender.
O que é que estava lhe estava acontecendo? Grande angústia tomou-a. Mas saiu do restaurante mais calma.
Na rua, de volta para casa, comprou um casaquinho para o bebé. Azul, pois tinha certeza que seria menino. Que nome lhe dana? Só podia lhe dar um nome: Jesus.
Em casa encontrou o marido lendo jornal e de chinelos. Contou-lhe o que acontecia. O homem se assustou:
— Então eu sou São José?
— E, foi a resposta lacónica.
Caíram ambos em grande meditação.
Maria das Dores mandou a empregada comprar as vitaminas a ginecologista receitara. Eram para o benefício de seu filho. Filho divino. Ela fora escolhida por Deus para dar ao mundo o novo Messias.
Comprou o berço azul. Começou a tricotar casaquinhos e a fazer fraldas macias.
Enquanto isso a barriga crescia. O feto era dinâmico: dava-lhe violentos pontapés. Às vezes ela chamava São José para pôr a mão na sua barriga e sentir o filho vivendo com forca. São José então ficava com os olhos molhados de lágrimas. Tratava-se de um Jesus vigoroso. Ela se sentia toda iluminada. A uma amiga mais íntima Maria das Dores contou a história abismante. A amiga também se assustou:
— Maria das Dores, mas que destino privilegiado você tem!
— Privilegiado, sim, suspirou Maria das Dores. Mas que posso fazer para que meu filho não siga a via crucis?
— Reze, aconselhou a amiga, reze muito.
E Maria das Dores começou a acreditar em milagres. Uma vez julgou ver de pé ao seu lado a Virgem Maria que lhe sorria. Outra vez ela mesma fez o milagre: o marido estava com uma ferida aberta na perna, Maria das Dores beijou a ferida. No dia seguinte nem marca havia.
Fazia frio, era mês de Julho. Em Outubro nasceria a criança.
Mas onde encontrar um estábulo? Só se fosse para uma fazenda do interior de Minas Gerais. Então resolveu ir a fazenda da tia Mininha. O que a preocupava é que a criança não nasceria em vinte e cinco de Dezembro. Ia à igreja todos os dias e, mesmo barriguda, ficava horas ajoelhada. Como madrinha do filho escolhera a Virgem Maria. E para padrinho o Cristo.E assim foi se passando o tempo. Maria das Dores engordara brutalmente e tinha desejos estranhos. Como o de comer uvas geladas. São José foi com ela para a fazenda. E lá fazia seus trabalhos de marcenaria. Um dia Maria das Dores empanturrou-se demais – vomitou muito e chorou. E pensou: começou a via crucis do meu sagrado filho.Mas parecia-lhe que, se desse a criança o nome de Jesus, ele seria, quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel. Nome simples. Nome bom.
Esperava Emmanuel sentada debaixo de urna jabuticabeira. E pensava:
- Quando chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!
E comia jabuticabas. Empanturrava-se a mãe de Jesus.
A tia — a par de tudo — preparava o quarto com cortinas azuis. O estábulo estava ali com seu cheiro bom de estrume e suas vacas.De noite Maria das Dores olhava para o céu estrelado a procura da estrela-guia. Quem seriam os três reis magos? quem lhe traria Incenso e mirra?Dava longos passeios porque a médica lhe recomendara caminhar muito. São José deixara crescer a barba grisalha e os longos cabelos chegavam-lhe aos ombros. Era difícil esperar. O tempo não passava. A tia fazia-lhes, para o café da manhã,, brevidades que se desmanchavam na boca. E o frio deixava-lhes as mãos vermelhas e duras.
De noite acendiam a lareira e ficavam sentados ali a se esquentarem. São José arranjava para si um cajado. E, como não mudava de roupa, tinha um cheiro sufocante. Sua túnica era de estopa. Ele tomava vinho junto da lareira. Maria das Dores tomava grosso leite branco, com o terço na mão.
De manhã bem cedo ia espiar as vacas no estábulo. As vacas mugiam. Maria das Dores sorria-lhes. Todos humildes vacas e mulher. Maria das Dores a ponto de chorar. Ajeitava as palhas no chão, preparando lugar onde se deitar quando chegasse a hora. A hora da iluminação.
São José, com o seu cajado, ia meditar na montanha. A tia preparava lombinho de porco e todos comiam danadamente. E a criança nada de nascer.
Até que numa noite, as três horas da madrugada, Maria das Dores sentiu a primeira dor. Acendeu a lamparina, acordou São José, acordou a tia. Vestiram-se. E com um archote iluminando-lhes o caminho, dirigiram-se através das árvores para o estábulo. Uma grossa estrela faiscava no céu negro.
As vacas, acordadas, ficaram inquietas, começaram a mugir Daí a pouco nova dor. Maria das Dores mordeu a própria para não gritar. E não amanhecia.
São José tremia de frio. Maria das Dores, deitada na palha, um cobertor, aguardava.
Então veio urna dor forte demais. Ai Jesus, gemeu Maria das Dores. Ai Jesus, pareciam mugir as vacas.
As estrelas no céu.
Então aconteceu.
Nasceu Emmanuel.
E o estábulo pareceu iluminar-se todo.
Era um forte e belo menino que deu um berro na madrugada.
São José cortou o cordão umbilical. E a mãe sorria. A tia chorava.
Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam.
Depois da leitura encenda, o 3ºA brindou-nos com um conto que nos ajudou a perceber o que é "pôr o mundo de pernas para o ar". O ar embevecido do 11ºC é impagável.
Na segunda-feira passada, os alunos de Literatura Portuguesa, do 11ºC, foram até à sala do 3ºA, na Eb1 da Corujeira ler a história de Sara Monteiro - Dona Miquelina, o seu filho e a professora. Temos de agradecer a atenção que nos dispensaram e a simpatia com que nos receberam. Obrigada!
vim para a cidade servir servir o amor e não uma feijoada fria mas menina e moça temerária afastei-me das palavras sábias da avó que não me desaconselhavam nem a floresta, nem os lobos mas a cidade e os homens e na cesta acumulou a dissimulação que eu utilizaria como uma capa mas enchi a cesta de morangos silvestres queria servir com as palavras claras do tempo dos reis e das princesas mas o homem a quem amei com as palavras, os cozinhados, o sexo achou-os pesados, indigestos como aquelas que encheram a barriga do lobo da história que me tem servido de atalho ai avozinha sempre deveria ter usado a capa o homem sente a serva como rainha e as palavras balas certeiras contra a caixa toráxica. Novidades, novidades, é que não há caçador.
Ana Paula Inácio
Telhados de Vidro n.º 9, Nov. 2007, Averno, Lisboa
"Das Cartas Portuguesas a Amor de Perdição" Elabora um texto onde mostres as ligações que se podem estabelecer entre as Cartas Portuguesas e a novela de Camilo.
"A dedicação absoluta da freira de Cartas torna-a invulgar, quase única e, quem sabe, inspiradora do estereótipo que a literatura romântica, sobretudo na sua vertente gótica, tanto usou . Por outro lado, havia enorme competição na disputa dos favores das freiras, e eram os pretendentes quase sempre os sofredores, devido à rejeição, ao desdém e às exigências das únicas mulheres que podiam ser coquettes em Portugal, embora de forma oculta. A paixão única e imortal desta freira distancia-a do comportamento padrão das suas companheiras Tal como os amantes, elas viviam o amor enquanto ludus , jogo de sedução, ao passo que Mariana ter-se-á apaixonado perdidamente, sendo o seu amor o resultado de eros , na fase de encantamento, e de mania , na fase de abandono . Ao serem divulgadas estas cartas como as de uma qualquer freira portuguesa e quando não eram do conhecimento do público outros escritos freiráticos muito menos românticos, a situação que alicerçará a imagem do amor português no estrangeiro será a da freira apaixonada que escreve cartas de amor desesperado." [...] "Concluindo: tanto a ‘coita de amor’ das cantigas medievais quanto o ‘amor ardente’ de Camões estão presentes em Lettres Portugaises. O deleite no sofrimento e a queimadura nas cinzas da paixão não são novas, mas antes exacerbadas. A estes juntou a freira portuguesa o desespero da perda e a redenção através da morte para o mundo , que tão bem vão depois caracterizar o ‘amar perdidamente’ daquela que se assumiu como ‘Soror Saudade’, Florbela Espanca . Esta forma absoluta de amar dos portugueses vai entrar em choque com as regras sociais do seu país, produzindo a saudade, a tragédia e o fado." (Mariana Alcoforado e o ‘ Amor Português’ na Ficção Actual em Língua Inglesa, Luísa Alves)