As palavras, Maria Isabel Barreno


As palavras, Maria Isabel Barreno

Houve um tempo em que as palavras eram como portas. Sua enunciação abria pequenos buracos no muro do real das coisas concretas e dos factos visíveis, que nos cercava, e dentro da palavra navegávamps num mar de sons e cores, cheiros, vagas memórias de situações passadas, conotações, dor e alegria, que por razão nenhuma se ligavam às palavras fornecendo a chave da harmonia do universo, esperanças. Com as palavras recriava-se o real: tendo a liberdade de mudar o lugar das coisas, e suas posições relativas, ignorando o espaço e o tempo, separando, nos actos o gesto e o conteúdo mais variáveis, sobrepondo, numa mesma expressão, ternura e agressividade, medo e desejo. [...] Veio depois o tempo em que as palavras caíram. Passaram a querer dizer o objecto enunciado, e nada mais além disso. Todas as aberturas do muro do real aparente, das coisas e factos, se fecharam, e o real poético passou a ser uma memória ou um sonho, ainda enunciável por palavras justas, mas nunca mais revisitável. As pessoas perderam as suas pequenas chaves do segredo da harmonia do universo.

As palavras, in Contos analógicos, Maria Isabel Barreno.

Poderes | Carlos Bessa



Poderes*

Podemos ficar sentados a noite inteira
à espera de um sinal que nunca chega,
podemos num desespero sem nome perder
o gosto de tudo, enquanto o eu permanece
brilhante, estupidamente brilhante,
a sussurrar-nos ao ouvido a desgraça;
podemos, numa lufa-lufa, ir de filme
em filme, de livro em livro, como quem
sem terra procura uma casa, um lugar
a que possa chamar seu, onde tenha os seus
pertences e tempo para rir e tempo para
se aborrecer. Podemos ter pena de nós próprios,
podemos viver.
Carlos Bessa

* além dos sentidos comuns, poderes usa-se nos Açores como sinónimo de muito.

Grandes Livros, na RTP 2



A RTP-2 começa a transmitir amanhã, sexta-feira, a série Grandes Livros. Trata-se de doze documentários com a duração de 50 minutos cada, narrados por Diogo Infante. Esta produção Companhia de Ideias, inspirada na série americana Great Books — do Discovery Networks em parceria com o Center for the Book in the Library of Congress —, incide sobre obras maiores da literatura portuguesa. A saber: Os Maias, de Eça de Queiroz, Os Lusíadas, de Camões, O Delfim, de José Cardoso Pires, Aparição, de Vergílio Ferreira, Histórias da Terra e do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro do Desassossego, de Bernardo Soares [Pessoa], Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, Sermão de Santo António aos Peixes, do padre António Vieira, Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Em cada documentário, escritores, críticos e professores de literatura comentam (em diálogo com Joana Palminha) o plot, a importância e o contexto histórico da obra em análise, bem como a figura do autor. (informação retirada do blogue Da Literatura)

BETHAN HUWS - Etant donnés


(foto de Inês Silva)

BETHAN HUWS, "Fountain", Fundação de Serralves

A obra da artista galesa dialoga e questiona a linguagem e a obra de Marcel Duchamp.
Na imagem, podemos observar uma escultura intitulada Etant donnés - como a famosa obra de Duchamp - e que se encontra "escondida" nos jardins de Serralves.


Posted by Picasa

Teste

TESTE Pessoa TESTE Pessoa Paula Cruz Teste Literatura Portuguesa, Fernando Pessoa

Depois da paixão | Adília Lopes

Alvess

Depois
da paixão
e da ausência
ficou a esperança
e a indulgência

Não sou Marianna
e tu não és Chamilly

A minha história
é outra
e começa agora

Estou sempre
a começar

Adília Lopes


Que livro salvarias?



Se eu tivesse que salvar um livro, salvaria A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breynner Andresen, pois foi o primeiro livro que, ainda criança, li. A meu ver, Sophia é das melhores poetas - como ela gostava de ser tratada - que Portugal já teve. A história é cativante e cativou-me pela simplicidade e pelo mundo fantástico que nos apresenta. Sophia e este livro fizeram-me sonhar com mundos fantásticos.

Tiago Santos
Posted by Picasa

Sinto-me múltiplo


Júlio Pomar

Alfredo Margarido

"Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas."

Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação,


O quadro de Júlio Pomar remete – nos inevitavelmente para o universo pessoano.
Com efeito, o pintor consegue ilustrar o desdobramento e a cumplicidade que Fernando Pessoa exprime: “ Sinto – me múltiplo “.
O artista plástico vai além de Pessoa e, no quadro demonstra que o poeta é de facto múltiplo, isto é: a fragmentação pessoana teve a sua expressão máxima com a criação dos heterónimos, destacando – se destes – Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis – que são os mais representativos e estão representados no quadro.

Dizem?, de Fernando Pessoa by M.U.C.O.

Dizem?

Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por quê
Esperar?
Tudo é

Sonhar.

Fernando Pessoa, in Cancioneiro.


(Fernando Pessoa by M.U.C.0.)

Ela canta, pobre ceifeira | Fernando Pessoa

Ela canta, pobre ceifeira


Ela canta, pobre ceifeira
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah! canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.

Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

Fernando Pessoa, Cancioneiro



Proposta de análise:


Esta composição poética pode ser dividida em duas parte lógicas. Na primeira parte, constituída pelas três primeiras estrofes, o poeta descreve a ceifeira e sobretudo o seu canto, canto instintivamente alegre. Esta descrição seria objectiva, se o poeta não introduzisse aqui a sua perspectiva: o canto da ceifeira era “alegre” porque talvez ela se julgasse feliz, mas ela era “pobre” e a sua” voz cheia de anónima viuvez”. Por isso, “ouvi-la alegra e entristece”: alegra se atendermos às razões instintiva da ceifeira, entristece se a virmos na perspectiva total do poeta. Há pois, já, nesta primeira parte um grau de subjectividade do poeta que vai adensar-se no segundo momento.

Na segunda parte, o poeta exprime a sua emoção perante a canção inconscientemente alegre da ceifeira. Podemos, ainda, subdividir esta segunda parte em dois momentos. Primeiramente, o poeta lança um apelo à ceifeira para que continue a cantar a sua canção inconsciente, porque esta emoção o obriga a pensar, e a desejar ser ela, sem deixar de ser ele, e ter a sua “alegre inconsciência e a consciência disso”. Note-se que o poeta aspira ao impossível, pois ter a consciência da inconsciência é deixar de ser inconsciente! O sujeito lírico, ciente desta impossibilidade (a ciência pesa tanto!), lança uma apóstrofe ao céu, ao campo, à canção, personificados, pedindo-lhes que entrem dentro dele, o transformem na sombra deles e o levem para sempre. Paira aqui aquela dor de pensar tão habitual nos poemas de Fernando Pessoa. Mais um paradoxo do grande poeta , o qual tendo sido o que mais se serviu da inteligência, se sentiu um ser torturado, por ser um ser pensante, daí a sua aspiração pela alegre inspiração da ceifeira.

A nível morfo-sintáctico, nas três primeiras estrofes, o tempo verbal predominante é o presente,que projecta a voz doce da ceifeira, deslizando suavemente na imaginação do poeta que nela medita. A própria repetição das formas do presente (canta - três vezes; ondula) sugere a imagem da ceifeira a cantar a deslizar na imaginação do poeta. A mesma sugestão da passagem lenta do tempo, acomodada à meditação do poeta, é dada pelo recurso à perifrástica e pelo gerúndio. Na segunda parte do poema, predomina o imperativo para traduzir o apelo do poeta, em nítida função apelativa da linguagem.

Note-se a expressividade do gerúndio, na frase apelativa: "Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando" (o poeta queria a voz da ceifeira ondeando perpetuamente na sua imaginação).

Na primeira parte do poema por ser essencialmente descritiva, há mais adjectivos que na segunda, em que predominam os substantivos, pronomes e verbos, de harmonia com a função apelativa da linguagem que aí é predominante. A repetição do verbo "cantar " (sete vezes), do substantivo voz e canção, o uso do verbo ouvir, põem a sensação auditiva no âmago emocional do poeta.

O vocabulário do poema é todo ele simples, não ultrapassando em si os limites da norma. Mas o poeta soube carregar de sentidos subtilmente sugestivos as palavras mais simples. Assim, observemos a expressividade dos adjectivos: “pobre ceifeira”,”feliz talvez”, ”voz cheia de alegre e anónima viuvez”. Notemos os dois pares antitéticos: “pobre”/”feliz”; “alegre”/”anónima”. Estas relações justificam-se porque cada um dos pares tem de um lado a visão parcial da ceifeira, e por outro a visão total do poeta: a ceifeira era feliz e alegre como uma ave pode ser feliz e alegre, inconsciente do seu mal; o poeta via a sua pobreza, duvidava da sua felicidade (“feliz talvez”) e sentia na sua voz uma “alegre e anónima viuvez”. Note-se que o signo “viuvez” é vulgarmente tomado como símbolo de desamparo e tristeza. É evidente a amarga ironia que a expressão antitética "alegre e anónima viuvez" e o advérbio talvez posposto a feliz, projectam sobre a ceifeira e o seu canto, na primeira quadra. Os dois adjectivos da segunda quadra (ar limpo e enredo suave) não se podem desligar um do outro: o ar é limpo para que nele perpasse a voz suave de ceifeira; a voz cristalina da ceifeira volteia o céu igualmente cristalino. Atente-se na expressividade plurissignificativa do adjectivo incerta , na expressão " incerta voz".

O adjectivo está carregado de subjectividade do poeta, pois para ele a voz era ao mesmo tempo alegre e triste. O adjectivo alegre ("a tua alegre inconsciência"), apontando para a parcialidade do conhecimento que a ceifeira tinha da sua vida, está carregado de amarga ironia: o poeta desejava a inconsciência da ceifeira por ser (para ela) a única causa da sua alegria.
Note-se, finalmente, a subtil expressividade do adjectivo leve (“a vossa sombra leve”, sugerindo leveza, a quase imaterialidade desta visão-sonho que o poeta teve da pobre ceifeira). Para exprimir a imaterialidade, a subjectividade dessa visão poética., há ainda comparações e metáforas. A comparação: "a sua voz...ondula como um canto de ave" aponta não apenas para a suavidade da voz, mas também para o muito de instintivo, de inconsciente que tem a alegria da sua voz. "No ar limpo como um limiar" acentua a pureza do ar, do céu em que o poeta imagina a voz da ceifeira volteando: a pureza da voz da ceifeira projecta-se no ambiente em que ela se propaga

Notemos, agora, a expressividade das metáforas: "...a sua voz ondula" (como se ela enchesse o ar e este fosse o mar); "Na sua voz há o campo e a lida" (como se o perfume do campo e a grácil agitação do seu trabalho enchessem a sua); " E há curvas no enredo suave do som" (a sugerir a melodiosa harmonia da sua canção. "Derrama no meu coração"(como se a sua voz fosse um liquido delicioso de que o poeta queria ser alagado); "a ciência pesa tanto" (conotando com a dor de pensar).
Para exprimir a contradição entre a alegria da ceifeira e o seu trabalho duro, e as consequentes sensações opostas que ela operava nele, o poeta emprega várias antíteses: “pobre”/”feliz”; “alegre”/”anónima”; “Alegre/entristece” , e os paradoxos "Ah! Poder ser tu ,sendo eu!"; "Ter a tua alegre inconsciência e a consciência disso".
Repare-se quanta emoção e expressividade há nas personificações "voz cheia de alegre e anónima viuvez", "Ó céu, ó campo, ó canção!"; o poeta serviu -se , também do pleonasmo "entrai por mim dentro". Note-se a beleza da última estrofe: depois da referência ao peso da ciência e à brevidade da vida, o poeta sugere muito subtilmente, o desejo de se evolar na sombra leve da ceifeira, que também desaparece.
A nível fónico, o poeta usou a quadra , desta vez de harmonia com o assunto simples, embora intelectualizado, notando-se várias vezes o transporte entre pares de versos e entre estrofes à maneira da atafinda trovadoresca.
A rima é sempre cruzada, segundo o esquema rimático ABAB, rima sempre consoante, com excepção dos versos lº e 3º da primeira estrofe, em que se verifica rima toante. Note-se o som aberto da rima na última estrofe, sugerindo talvez a limpidez e a claridade do céu a que o o poeta aspirava. a comprovar a variedade sonora do poema, de harmonia com o canto do ceifeira, há ainda os frequentes casos de aliteração.